terça-feira, 14 de abril de 2009

O CRIME DO PADRE AMARO



"Ah, não tornaria a olhar de lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço! Também ele agora tinha uma, toda sua, alma e carne, que o adorava, que usava boas roupas brancas, e trazia no peito um cheirinho de água-de-colônia! Era padre, é verdade...Mas para isso tinha o seu grande argumento: é que o comportamento do padre, l
ogo que não dê escândalo entre os fiéis, em nada prejudica a eficácia, a utilidade, a grandeza da religião. Todos os teólogos ensinam que a ordem dos sacerdotes foi instituída para administrar os sacramentos; o essencial é que os homens recebam a santidade interior que os sacramentos contêm, e, contanto que eles sejam dispensados segundo as fórmulas consagradas, que importa se o sacerdote seja santo ou pecador? O sacramento comunica a mesma virtude. Não é pelos méritos do sacerdote que eles operam, mas pelos méritos de Jesus Cristo. O que é batizado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica igualmente bem lavado da mácula original, ou bem preparado para a vida eterna. Isso lê-se em todos santos padres, estabeleu-o o seráfico concílio de Trento. Os fiéis nada perdem, na sua alma e na sua salvação, com a indignidade do pároco. E se o pároco se arrepende na hora extrema, também se não lhe fecham as portas do céu. Logo em definitivo tudo acaba bem, e em paz geral...- E o padre Amaro, raciocinando assim, sorvia com prazer o seu café."
(...)
"...Ah! se fosse o tempo em que suprimia um homem com uma denúncia de heresia! Que o mundo recuasse duzentos anos, e o sr João Eduardo haveria de saber o que custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amélia..."
(...)
"...A felicidade, padre-mestre era que a criança nascesse morta:
- Era um anjinho mais...- rosnou o cônego sorvendo a sua pitada"
(Trechos de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz).
Há tempos venho me deliciando com a leitura desse super-clássico da literatura portuguesa, aliás, de um valor indescritível, posto ser a primeira obra do realismo em nossa língua. Eça foi fonte de inspiração para Machado, e como este foi também um gênio, um monstro com uma pena na mão. À medida em que vamos nos deixando levar pela leitura, a sensação que se tem é que viajamos no tempo, transcendemos na história, assistimos aos fatos, participamos ativamente do enredo, nos emocionamos com o drama, nos revoltamos com as picaretagens de sempre, promovidas pela Igreja Católica.
Aliás, eu ia até falar desse livro antes, mas por medo da Bianca, resolvi não fazê-lo durante a Semana Santa. Mas agora, agora eu não posso resistir.
Em toda a minha formação, digamos, anticlerical, antilitúrgica, (ou se vocês preferirem atéia, materialista, fiquem à vontade), eu procurei me cercar de bíblias, alcorões, livros de autores renomados como o Richard Dawkins, Nietzche, Christopher Hitchens, Sam Harris e outros...Não é fácil se defender , quando simplesmente ousa-se querer apenas não acreditar em nada.
Bobagem! Bastava ler Eça, tão antigo quanto atual:
"Toda a vida do bom católico, o seu pensamento, as suas idéias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as suas relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus divertimentos - tudo isso é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cônego), aprovado, ou censurado, pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, (...), não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ele. O seu único trabalho neste mundo, que é, ao mesmo tempo, o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas idéias, deve pensar que as suas idéias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas."
(...)
"Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; segundo a religião de nossos pais, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas se não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura - és simplesmente um maroto. Outros personagens, maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas porque não foram batizados antes de terem sido perfeitos. Há de ter ouvido falar em Sócrates, dum outro chamado Platão, Catão, etc. Foram sujeitos famosos por suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes desses homens estava cheio o inferno... Isso prova que a moral católica é diferente da moral natural e da moral social".

Em seu realismo absurdamente bem humorado e seco, Eça deslinda, desnuda toda a perversão e maldade do clero da época, já muito mais brando que duzentos anos antes, época do ferro e fogo da Inquisição.
No livro, toda a fúria da Igreja de uma cidade relativamente importante de Portugal recai sobre a cabeça de um rapaz que, enciumado, comete a estupidez de escrever um artigo em um jornal criticando os desmandos dos padres, entre os quais o tal do Amaro, que sob o seu nariz, seduz a sua noiva, à frente das beatas, da futura sogra, sem que ele possa fazer nada a respeito, nada!
Ah, quisera poder ler em alto e bom som a todos os beatos e beatas o Crime do Pe Amaro, de cabo a rabo!
Como defender a mesma instituição que, há tão pouco tempo, enfrentou nos EUA e em tantos outros cantos gravíssimas denúncias, mais tarde provadas, de pedofilia, a mesma Igreja que tantos matou em suas fogueiras, que fechou os seus olhos e templos ante à maldade de Hitler na Segunda Guerra Mundial, aquela que nos anos 80 provocou uma derrama no mercado financeiro mundial pelas falcatruas cometidas pelo Banco do Vaticano? O que dizer dessa Igreja que hoje condena quem usa a camisinha, quem toma a pílula anticoncepcional, que prega contra as experiências com as células-tronco, que podem vir a salvar milhões de vidas, que não quer a inseminação artificial, a fertilização "in vitro", o aborto de uma gravidez resultante de estupro? Que quer, enfim, a volta à Idade Média, às trevas, onde reinava absoluta, soberana?
"E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem posto, tecedeira de anjos...Com razão, quem prepara uma criança com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as lágrimas...Mais vale tecer-lhe o pescoço e mandá-la direto para a eternidade bem-aventurada!"
"-Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros sintomas de razão - continuava o doutor - quando se torna necessário que ele tenha, para o distinguir dos animais, uma noção de si mesmo e do universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato de seis anos que não sabe ainda o be-a-bá tem a ciência mais vasta, mais certa, que as reais academias combinadas de Londres, Paris e Berlim! O velhaco não hesita um momento para dizer como se fez o universo e os seus sistemas planetários; como apareceu na terra a criação; como se sucederam as raças, como passaram as revoluções geológicas do globo; como se formaram as línguas; como se inventou a escrita...Sabe tudo: possui completa e imutável a regra para dirigir todas as ações e formar todos os juízos; tem mesmo a certeza de todos os mistérios; ainda que seja míope como uma toupeira, vê o que se passa nas profundidades do céu e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão assistir a esse espetáculo, o que lhe há de suceder depois de morrer...Não há problema que não decida...E quando a Igreja tem feito deste marmanj0 uma tal maravilha de saber, manda-o então aprender a ler...O que eu pergunto é: para quê?"
(...)
"E com um grande gesto, mostrava-lhes o largo do Loreto, que àquela hora, no fim de tarde serena, concentrava a vida da cidade. Tipóias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passeavam, de cuia cheia e tacão alto, com movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração de raça; nalguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre as suas altas rodas, era com o símbolo de agriculturas atrasadas de séculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia nos cartazes o anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como a personificação de indústrias moribundas...E todo este mundo decrepto se movia lentamente, sob um céu lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a loteria e a batota pública, e rapazitos de voz plangente oferecendo o Jornal das pequenas novidades: e iam, num vagar medraço, entre o largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da praça onde brilhavam três tabuletas de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e de crime.
Que pena, somente agora, aos quarenta e sete anos de idade, estar lendo o Pe Amaro, estar conhecendo mais a fundo Eça!
Se bem que, quem sabe, não seria necessário evoluir até aqui, para lê-lo? Assim como somente agora compreendo melhor a obra de Machado? Sim, sim, talvez seja melhor somente conhecê-los na intimidade agora, para poder sorvê-los em toda a sua sapiência, já em minha face adulta, em minha maturidade, em meu despudor. De que me adiantaria fazer deles íntimo em minha juventude, sem que as minhas idéias estivessem lapidadas, sem a paciência para pensá-los, para refletí-los, para estudá-los?
Não, melhor desfrutá-los agora, calmamente, desavergonhadamente, devagar.
O diacho, e não é a primeira vez que falo sobre isso, é que sinto cada vez mais nítida a exiguidade de tempo disponível que ainda me sobra na vida para a leitura, quando cotejado com a quantidade de bons autores que precisam ser lidos. Isso, sim, dói! Como fazer para selecioná-los, para não perder tempo, este tempo tão precioso, lendo porcarias! Ai, que aflição isso dá!
Minhas prateleiras de livros "por ler" crescem em proporção assustadoramente mais rápida que aquela "livros lidos" que parece engatinhar, encolher - e receio que tal proporção só fará piorar, visto que o amor que tenho pelos livros não se restringe apenas ao seu conteúdo, mas avança também ao objeto: sua forma, seu cheiro...Gosto de pegá-los, sentí-los, vê-los expostos...De forma que os compro, não paro de comprá-los. Impossível ainda para mim ser politicamente correto e doá-los, para que servissem a outras pessoas. Assumo meu egoísmo, não posso doá-los, não consigo. Eu os amo, e quem ama quer o objeto de seu amor perto de si. O amor é um sentimento egoísta.
Assim, enquanto Eça vai repousar em paz em uma de minhas amadas prateleiras, rapidamente me enamorarei promiscuamente por outro, que me conduzirá, por certo, a novos mundos, sensações, cóleras, angústias, aflições, alegrias e boleros.
O que perdem os que se distanciaram dos livros!!!!

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