Trecho do livro Absurdistão, de Gary Shteyngart (Editora Rocco, 2008)
Dizem que o humor, ou melhor, dizem que fazer o humor é muito mais difícil que fazer o drama. Eu não duvido.
Não duvido porque acredito que há (sei que aqui estou generalizando, portanto quero deixar claro que respeito as exceções) muito mais inteligência no humor do que no drama. O drama é fácil, está escancarado na pobreza das ruas, na violência, na constante injustiça, na frieza do desamor e da inexorabilidade da morte. Difícil é tirar humor e conseguir fazer rir de todas essas mazelas (dizem, ou sempre disseram, que o brasileiro é craque em fazer isso. Para mim, não é nada, isso é estória, é balela). Ou conseguir rir, apesar de todas essas mazelas. Por isso é mais difícil. E, por isso, mais inteligente.
E, de todos os tipos de humor, talvez o mais engraçado de todos seja aquele em que conseguimos rir de nossas próprias desgraças. É daí que surgem os anti-heróis, que são os verdadeiros ícones do humor, como Carlitos, que considero um exemplo clássico no cinema; ou seu paralelo na literatura, o apaixonante Quixote de Cervantes.

Então eu repito: fazer humor é mais inteligente que fazer drama. Fazer humor de nosso drama é mais inteligente ainda.
Isso posto, eu quero falar do livro de um russo chamado Gary Shteyngart que li há bastante pouco tempo, "Absurdistão".
Gary faz parte de uma novíssima geração de escritores russos pós-perestroika-Gorbatchov, que têm a difícil e interessante missão de mostrar ao mundo a nova cara do que antes era a toda poderosa URSS. Se é que essa cara, de fato, existe. Para mim, está longe de existir. Está em formação.
Nascido em 1972, em plena guerra fria, na antiga Leningrado (hoje São Petersburgo), aos sete anos de idade mudou-se para os Estados Unidos, mais precisamente para Nova York, onde desde então reside.
E foi nos Estados Unidos que descobriu-se escritor, fez e faz carreira, ganhou o seu mais importante prêmio até agora - melhor livro do ano pelo jornal Washington Post (The Russian Debutante's Handbook).
A história contada em Absurdistão é mais ou menos a história de todo russo que vive, hoje em dia, uma forte crise de identidade. A Rússia vive uma forte crise de identidade. O autor vive uma forte crise de identidade (pois é russo, vive nos EUA, faz sucesso nos EUA, escreve sobre a Rússia).
E não é somente a Rússia, naturalmente, que sofre semelhante tipo de crise. Todas as antigas repúblicas soviéticas, agora órfãs da proteção do forte aparelhamento estatal da falácia comunista lutam neste exato momento para saber o quê e quem são. E vivem as suas revoluções, recheadas de líderes demagogos, etnias que não existem, religiões que lutam entre si, mesmos povos que lutam entre si em busca de um naco de poder. Entre tais repúblicas, uma delas poderia muito bem ser o Absurdistão de Shteyngart, seu fictício país, criado para dividir o palco de seu hilário, mas seríssimo livro. O humor fino e inteligente de quem faz ironia de sua própria desgraça.
A par da falta de identidade, da falta de democracia, estabilidade democrática e de uma sucessão desenfreada de conflitos, essas repúblicas, sem o menor preparo prévio e com os seus fundamentos cultu
rais absolutamente fragilizados, recebem uma invasão do capitalismo com as suas armas coloridas mais selvagens, mexendo de tal forma com as pessoas, quase despidas de suas identidades, que as transformam em tristes fantoches das figuras cidentais mais bizarras. Mais ou menos como o que aconteceu com aquele jogador de futebol brasileiro, há muitos anos atrás, um dos primeiros a ir jogar na Europa. Passou por lá três ou quatro anos e voltou mudo. Não aprendeu a falar o idioma de onde passou a morar e esqueceu-se do português.

Assim são os absurdistaneses, assim podem se tornar os russos, mesmo com o seu vastíssimo cabedal de cultura e tradições. Podem acabar se esquecendo de sua vodka de tanto tomar "Black Label" falsificado.
Sorte deles que têm os autores da nova geração, como Gary Shteyngart que, com o seu Absurdistão, mesmo mantendo viva a sua literatura lá nos EUA e recebendo prêmios no Washington Post, com certeza estão ciosos de sua importante responsabilidade em perpetuar a exuberante herança literária que receberam de sua pátria-mãe.
"Misha Vainberg é o filho do 1.238º homem mais rico da Rússia, amante de comida e bebida fartas, rapper amador e amante de uma latina de South Bronx com quem sonha viver um dia em Nova York, caso o Serviço de Imigração Americano lhe conceda um visto. Isso, porém, não vai acontecer, pois o falecido pai de Misha matou um influente empresário de Oklahoma e é Misha quem paga a conta, exilado do lar americano que adotou. Sem conseguir sair da Rússia, ele sonha com a sua amada Rouenna e com o reino de Oz em Nova York.
Sua salvação talvez esteja na minúscula nação do Absurdistão, um país rico em petróleo onde um funcionário corrupto do consulado lhe venderá um passaporte belga. Mas, quando eclode uma guerra civil entre dois grupos étnicos rivais e um poderoso local nomeia o azarado Misha para o cargo de ministro de assuntos multiculturais, nosso herói se vê chafurdando em disputas políticas, lutando pela própria vida, apaixonando-se outra vez e tentando descobrir se ainda é possível ter uma vida normal no séc XXI."
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