quinta-feira, 16 de abril de 2009

VIRGENS SUICIDAS



"- Ah, tudo bem...Lembre-se do provérbio árabe: "Os cães ladram e a caravana passa"





"...pois afinal, a arte não é água destilada: impressões pessoais, preconceitos e seletividade subjetiva comprometem a pureza da verdade cristalina".





-" o principal ingrediente é o talento paran registrar mentalmente longas conversas, uma habilidade que desenvolvi com muito esforço durante pesquisa para escrever "As musas são ouvidas", pois acredito piamente que tomar notas - e principalmente o uso de um gravador - gera interferências e destrói ou distorce qualquer naturalidade que pode existir entre o observador e o observado, entre o nervoso beija-flor e o seu predador potencial".





" - não há nada mais solitário do que ser aspirante a artista sem algo que lembre a uma platéia"





" Claro, esta é a principal tarefa do artista: domar e dar forma a uma visão criativa em estado bruto".





" Não sou releitor assíduo de meus próprios livros: o que está feito, está feito."





"Ocasionalmente dou um peso (de papel, cristal, coleção que fazia) a uma amigo muito especial, e ele sempre sai dos meus preferidos, pois como disse Colette naquela tarde distante, quando declarei não poder aceitar como presente algo que ela obviamente adorava: "Meu caro, não há razão para dar de presente algo que a gente não valoriza".





"Ela pertence à seita mais inapelável e rapidamente aprisionável de Nova York, os talentosos sem talento; sensíveis demais para aceitar um ambiente provinciano, embora insuficientemente sensíveis para circular no meio que tanto desejam, eles se arrastam, neuróticos, alimentando-se das sobras da vida nova-iorquina".





"Só o sucesso, e mesmo assim apenas no auge, pode trazer o alívio. Mas, para os artistas sem arte, é sempre tensão sem alívio, irritação sem perda resultante".





Truman Capote



Os Cães Ladram





São trechos do livro que leio, desde ontem, tomado pela insônia.



Engraçado, eu pensei - já sabia, claro, que se tratava de provérbio árabe -, mas eu pensei que apenas o nosso Ibrahim Sued o usasse, mas não. Truman Capote, lá pelos idos de 1950, já o adotara, talvez então antes mesmo de nosso folclórico colunista, o que não seria difícil. Ibrahim, embora descendente de árabes, talvez não tivesse como ter ciência de um provérbio pelos livros, tão distantes de sua vida tão glamorosa. Deixemos o Ibrahim descansar em paz, ele era muito divertido, eu gostava muito dele.



O fato é que ontem, ao chegar em casa do trabalho, eu comecei a ler o "Elogio da Madrasta", recém-lançado pela livro de Mario Vargas Llosa pela Editora Allfaguara, que está reeditando toda a sua obra. Trata-se de uma incursão do Nobel peruano à literatura erótica. Extremamente original, como tudo o que ele brilhantemente faz. Mas até o final da primeira parte da noite, lá pela metade do livro, que é curtinho, eu nele não me havia ainda engatado completamente. Cedo, porém, para dele fazer algum juízo. O peruano sempre surpreende.


Então suspendi a leitura, para ver "As Virgens Suicidas", filme de estréia da cineasta Sophie Copolla, com ótimas participações de James Woods e Kathleen Turner (absolutamente irreconhecível como mãe de meia-idade, desprovida de qualquer tipo de vaidade, rechonchuda).


Traz uma história quase inverossímel (e isso pode?) de tão trágica.



Família de classe média de cidade do interior dos Estados Unidos, de formação extremamente religiosa (ai, lá vou eu...) e conceitos absurdamente rígidos traz em seu seio cinco adolescentes, lindas, na flor da idade, a idade em que descobrem a sua sexualidade, as suas primeiras paixões...


A mais nova tenta o suicídio, o que faz com que os pais, assustadíssimos, "afrouxem" um pouco as suas apertadas amarras e convicções: tratam de chamar os rapazes vizinhos para uma espécie, regada a "ponche". Durante o regabofe, porém, a problemática jovem pede para se retirar mais cedo e, da forma mais bizarra possível, é bem-sucedida no seu intento de se matar.


Mas é preciso que se diga, entretanto, que esses pais não são relapsos, não são maus: são ignorantes, assim como o são todos aqueles vitimados pela horrorosa pressão exercida pela hipócrita sociedade que ainda hoje (mas o filme se passa nos anos 70, com uma ótima trilha sonora, por sinal) predomina no sul republicano dos EUA. Na verdade, esses pais amam suas filhas, e estão em pânico com a tragédia que se abateu em sua família e a culpa que se instalou em suas almas.
E mais uma vez tentam desafiar todas as suas crenças e permitem que as suas quatro filhas remanescentes, vestidas exatamente da mesma forma, acompanhem ao baile anual da escolan os quatro mais destacados rapazes da cidade, capitaneados pela sensação juvenil local, Trip, que se interessa pela não menos bela e sensualíssima Lux (Kirsten Durnst). Que acaba dormindo fora de casa!


O que naturalmente, vai mexer com todas as estruturas familiares, e levar o drama a um desfecho mais do que surpreendente.




Pode parecer exagerado, o filme. Mas o que pode ser exagerado em uma sociedade como a americana conservadora, catequizada pela ignorância da fé evangélica?


Vale a pena conferir.


Depois, então, do drama, eu passei ao homor sarcástico de Truman Capote, sobre qual, lá adiante, volto a falar.




terça-feira, 14 de abril de 2009

O CRIME DO PADRE AMARO



"Ah, não tornaria a olhar de lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço! Também ele agora tinha uma, toda sua, alma e carne, que o adorava, que usava boas roupas brancas, e trazia no peito um cheirinho de água-de-colônia! Era padre, é verdade...Mas para isso tinha o seu grande argumento: é que o comportamento do padre, l
ogo que não dê escândalo entre os fiéis, em nada prejudica a eficácia, a utilidade, a grandeza da religião. Todos os teólogos ensinam que a ordem dos sacerdotes foi instituída para administrar os sacramentos; o essencial é que os homens recebam a santidade interior que os sacramentos contêm, e, contanto que eles sejam dispensados segundo as fórmulas consagradas, que importa se o sacerdote seja santo ou pecador? O sacramento comunica a mesma virtude. Não é pelos méritos do sacerdote que eles operam, mas pelos méritos de Jesus Cristo. O que é batizado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica igualmente bem lavado da mácula original, ou bem preparado para a vida eterna. Isso lê-se em todos santos padres, estabeleu-o o seráfico concílio de Trento. Os fiéis nada perdem, na sua alma e na sua salvação, com a indignidade do pároco. E se o pároco se arrepende na hora extrema, também se não lhe fecham as portas do céu. Logo em definitivo tudo acaba bem, e em paz geral...- E o padre Amaro, raciocinando assim, sorvia com prazer o seu café."
(...)
"...Ah! se fosse o tempo em que suprimia um homem com uma denúncia de heresia! Que o mundo recuasse duzentos anos, e o sr João Eduardo haveria de saber o que custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amélia..."
(...)
"...A felicidade, padre-mestre era que a criança nascesse morta:
- Era um anjinho mais...- rosnou o cônego sorvendo a sua pitada"
(Trechos de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz).
Há tempos venho me deliciando com a leitura desse super-clássico da literatura portuguesa, aliás, de um valor indescritível, posto ser a primeira obra do realismo em nossa língua. Eça foi fonte de inspiração para Machado, e como este foi também um gênio, um monstro com uma pena na mão. À medida em que vamos nos deixando levar pela leitura, a sensação que se tem é que viajamos no tempo, transcendemos na história, assistimos aos fatos, participamos ativamente do enredo, nos emocionamos com o drama, nos revoltamos com as picaretagens de sempre, promovidas pela Igreja Católica.
Aliás, eu ia até falar desse livro antes, mas por medo da Bianca, resolvi não fazê-lo durante a Semana Santa. Mas agora, agora eu não posso resistir.
Em toda a minha formação, digamos, anticlerical, antilitúrgica, (ou se vocês preferirem atéia, materialista, fiquem à vontade), eu procurei me cercar de bíblias, alcorões, livros de autores renomados como o Richard Dawkins, Nietzche, Christopher Hitchens, Sam Harris e outros...Não é fácil se defender , quando simplesmente ousa-se querer apenas não acreditar em nada.
Bobagem! Bastava ler Eça, tão antigo quanto atual:
"Toda a vida do bom católico, o seu pensamento, as suas idéias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as suas relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus divertimentos - tudo isso é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cônego), aprovado, ou censurado, pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, (...), não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ele. O seu único trabalho neste mundo, que é, ao mesmo tempo, o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas idéias, deve pensar que as suas idéias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas."
(...)
"Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; segundo a religião de nossos pais, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas se não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura - és simplesmente um maroto. Outros personagens, maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas porque não foram batizados antes de terem sido perfeitos. Há de ter ouvido falar em Sócrates, dum outro chamado Platão, Catão, etc. Foram sujeitos famosos por suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes desses homens estava cheio o inferno... Isso prova que a moral católica é diferente da moral natural e da moral social".

Em seu realismo absurdamente bem humorado e seco, Eça deslinda, desnuda toda a perversão e maldade do clero da época, já muito mais brando que duzentos anos antes, época do ferro e fogo da Inquisição.
No livro, toda a fúria da Igreja de uma cidade relativamente importante de Portugal recai sobre a cabeça de um rapaz que, enciumado, comete a estupidez de escrever um artigo em um jornal criticando os desmandos dos padres, entre os quais o tal do Amaro, que sob o seu nariz, seduz a sua noiva, à frente das beatas, da futura sogra, sem que ele possa fazer nada a respeito, nada!
Ah, quisera poder ler em alto e bom som a todos os beatos e beatas o Crime do Pe Amaro, de cabo a rabo!
Como defender a mesma instituição que, há tão pouco tempo, enfrentou nos EUA e em tantos outros cantos gravíssimas denúncias, mais tarde provadas, de pedofilia, a mesma Igreja que tantos matou em suas fogueiras, que fechou os seus olhos e templos ante à maldade de Hitler na Segunda Guerra Mundial, aquela que nos anos 80 provocou uma derrama no mercado financeiro mundial pelas falcatruas cometidas pelo Banco do Vaticano? O que dizer dessa Igreja que hoje condena quem usa a camisinha, quem toma a pílula anticoncepcional, que prega contra as experiências com as células-tronco, que podem vir a salvar milhões de vidas, que não quer a inseminação artificial, a fertilização "in vitro", o aborto de uma gravidez resultante de estupro? Que quer, enfim, a volta à Idade Média, às trevas, onde reinava absoluta, soberana?
"E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem posto, tecedeira de anjos...Com razão, quem prepara uma criança com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as lágrimas...Mais vale tecer-lhe o pescoço e mandá-la direto para a eternidade bem-aventurada!"
"-Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros sintomas de razão - continuava o doutor - quando se torna necessário que ele tenha, para o distinguir dos animais, uma noção de si mesmo e do universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato de seis anos que não sabe ainda o be-a-bá tem a ciência mais vasta, mais certa, que as reais academias combinadas de Londres, Paris e Berlim! O velhaco não hesita um momento para dizer como se fez o universo e os seus sistemas planetários; como apareceu na terra a criação; como se sucederam as raças, como passaram as revoluções geológicas do globo; como se formaram as línguas; como se inventou a escrita...Sabe tudo: possui completa e imutável a regra para dirigir todas as ações e formar todos os juízos; tem mesmo a certeza de todos os mistérios; ainda que seja míope como uma toupeira, vê o que se passa nas profundidades do céu e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão assistir a esse espetáculo, o que lhe há de suceder depois de morrer...Não há problema que não decida...E quando a Igreja tem feito deste marmanj0 uma tal maravilha de saber, manda-o então aprender a ler...O que eu pergunto é: para quê?"
(...)
"E com um grande gesto, mostrava-lhes o largo do Loreto, que àquela hora, no fim de tarde serena, concentrava a vida da cidade. Tipóias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passeavam, de cuia cheia e tacão alto, com movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração de raça; nalguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre as suas altas rodas, era com o símbolo de agriculturas atrasadas de séculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia nos cartazes o anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como a personificação de indústrias moribundas...E todo este mundo decrepto se movia lentamente, sob um céu lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a loteria e a batota pública, e rapazitos de voz plangente oferecendo o Jornal das pequenas novidades: e iam, num vagar medraço, entre o largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da praça onde brilhavam três tabuletas de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e de crime.
Que pena, somente agora, aos quarenta e sete anos de idade, estar lendo o Pe Amaro, estar conhecendo mais a fundo Eça!
Se bem que, quem sabe, não seria necessário evoluir até aqui, para lê-lo? Assim como somente agora compreendo melhor a obra de Machado? Sim, sim, talvez seja melhor somente conhecê-los na intimidade agora, para poder sorvê-los em toda a sua sapiência, já em minha face adulta, em minha maturidade, em meu despudor. De que me adiantaria fazer deles íntimo em minha juventude, sem que as minhas idéias estivessem lapidadas, sem a paciência para pensá-los, para refletí-los, para estudá-los?
Não, melhor desfrutá-los agora, calmamente, desavergonhadamente, devagar.
O diacho, e não é a primeira vez que falo sobre isso, é que sinto cada vez mais nítida a exiguidade de tempo disponível que ainda me sobra na vida para a leitura, quando cotejado com a quantidade de bons autores que precisam ser lidos. Isso, sim, dói! Como fazer para selecioná-los, para não perder tempo, este tempo tão precioso, lendo porcarias! Ai, que aflição isso dá!
Minhas prateleiras de livros "por ler" crescem em proporção assustadoramente mais rápida que aquela "livros lidos" que parece engatinhar, encolher - e receio que tal proporção só fará piorar, visto que o amor que tenho pelos livros não se restringe apenas ao seu conteúdo, mas avança também ao objeto: sua forma, seu cheiro...Gosto de pegá-los, sentí-los, vê-los expostos...De forma que os compro, não paro de comprá-los. Impossível ainda para mim ser politicamente correto e doá-los, para que servissem a outras pessoas. Assumo meu egoísmo, não posso doá-los, não consigo. Eu os amo, e quem ama quer o objeto de seu amor perto de si. O amor é um sentimento egoísta.
Assim, enquanto Eça vai repousar em paz em uma de minhas amadas prateleiras, rapidamente me enamorarei promiscuamente por outro, que me conduzirá, por certo, a novos mundos, sensações, cóleras, angústias, aflições, alegrias e boleros.
O que perdem os que se distanciaram dos livros!!!!

domingo, 12 de abril de 2009

NA NATUREZA SELVAGEM

"A felicidade só é verdadeira quando é compartilhada"


Na Natureza Selvagem (into the Wild)
EUA, 2007
Direção: Sean Penn
Com Emily Hirsch, Vince Vaughn, Catherine Keener e Hal Holbrook


Baseado em uma história real (Sean Peen demorou vários anos para conseguir a autorização da família do personagem principal, Christopher McCandless, para começar rodar o filme), "Into the Wild" é uma bonita, triste e feliz lição de vida. Triste por ser um drama e feliz por ser extremamente eficiente em passar ao espectador a sua bonita mensagem, trabalhando, para isso, com os seus melhores sentidos; a fotografia belíssima (do diretor Eric Gautier, o mesmo de "Diários da Motocicleta", filme do diretor Walter Salles sobre Che Guevara) e a música, maravilhosa a cargo de Eddie Veeder, vocalista do Pearl Jam.

Christopher McCandless não é um garoto comum. Tampouco um garoto desajustado. Muito pelo contrário.

Criado por pais neuróticos, egoístas e absurdamente materialistas (mas que por isso pagarão um alto preço em suas vidas), nem por isso é um garoto-problema, psicótico, emo, dramático, etc. Nada disso. É dócil, carinhoso com a família, especialmente com a irmã, que faz a narrativa do filme, e até mesmo com os pais, em determinadas lembranças.

Se forma de forma brilhante, com notas boas o suficiente para ingressar em Harvard. É um apaixonado pela literatura, é apesar de sua pouca idade é já um erudito, conhecedor dos mais renomados mestres universais, muito citados ao longo do filme. Desapegado, recusa o presente dos pais, um carro novo pela sua formatura e o custeio de todo a sua formação superior.

Mas ele tem outros planos. Quer rodar o mundo, se misturar à natureza, ser parte dela.

Se desfaz de tudo o que tem, de todo o seu dinheiro - doa para uma instituição de caridade -, abandona o seu carro à beira da estrada e queima os seus documentos, deixa formalmente de existir. Tudo isso parece piegas, algo meio anos 60, mais à medida em que o filme avança a impressão se desfaz. Lembrem-se que o rapaz tem apenas vinte e três anos de idade.

Começa uma grande viagem pelos Estados Unidos, que é tão somente a preparação para o sonho maior, uma hibernação no Alasca, onde viverá da caça, da natureza, em seu estado mais selvagem.

Nessa viagem, vai conhecendo pessoas interessantíssimas, que vão moldando e mudando para sempre (e o para sempre, como diria Renato Russo, sempre acaba) a sua visão das coisas, a sua concepção de mundo. Mas não lhe bastam os sábios conselhos dessas pessoas. Ele precisa sentir na pele, ele precisa que a natureza que tanto ama lhe dê as respostas que ele tanto precisa.

Ele viaja em boléias de caminhões, em vagões de trem, em caiaques; trabalha em plantações, em colheitadeiras enormes, ou pilota fogões em lanchonetes de "fast-foods"; mora em desertos, em campos de nudismo.

E chega então ao Alasca, aos seus sonhos e às suas conclusões, que não são bem aquelas que ele esperava, e que também não são apenas as suas conclusões, mas acabam sendo as nossas conclusões também.

Embora tenha sido indicado para dois "Oscar", "Into the Wild" foi solenemente ignorado pela Academia de Cinema de Hollywood.

O que, é claro, não surpreende, vez que seu diretor é Sean Penn, "personna non grata" dos republicanos que dominam a indústria cinematográfica americana.

Inclusive, há uma cena do filme que mostra o "pateta-mor", "Bob-pai", George Bush, falando pela TV a favor de sua Guerra do Golfo, assim como faria, anos mais tarde o seu filho trapalhão sobre a Guerra do Iraque.

Não é, absolutamente, um filme "bicho-grilo", hippie, etc. É um lindo filme sobre a vida de um idealista, ingênuo e corajoso rapaz. Vejam.


segunda-feira, 6 de abril de 2009

ABSURDISTÃO

Trecho do livro Absurdistão, de Gary Shteyngart (Editora Rocco, 2008)



Dizem que o humor, ou melhor, dizem que fazer o humor é muito mais difícil que fazer o drama. Eu não duvido.

Não duvido porque acredito que há (sei que aqui estou generalizando, portanto quero deixar claro que respeito as exceções) muito mais inteligência no humor do que no drama. O drama é fácil, está escancarado na pobreza das ruas, na violência, na constante injustiça, na frieza do desamor e da inexorabilidade da morte. Difícil é tirar humor e conseguir fazer rir de todas essas mazelas (dizem, ou sempre disseram, que o brasileiro é craque em fazer isso. Para mim, não é nada, isso é estória, é balela). Ou conseguir rir, apesar de todas essas mazelas. Por isso é mais difícil. E, por isso, mais inteligente.
E, de todos os tipos de humor, talvez o mais engraçado de todos seja aquele em que conseguimos rir de nossas próprias desgraças. É daí que surgem os anti-heróis, que são os verdadeiros ícones do humor, como Carlitos, que considero um exemplo clássico no cinema; ou seu paralelo na literatura, o apaixonante Quixote de Cervantes.
Então eu repito: fazer humor é mais inteligente que fazer drama. Fazer humor de nosso drama é mais inteligente ainda.
Isso posto, eu quero falar do livro de um russo chamado Gary Shteyngart que li há bastante pouco tempo, "Absurdistão".
Gary faz parte de uma novíssima geração de escritores russos pós-perestroika-Gorbatchov, que têm a difícil e interessante missão de mostrar ao mundo a nova cara do que antes era a toda poderosa URSS. Se é que essa cara, de fato, existe. Para mim, está longe de existir. Está em formação.
Nascido em 1972, em plena guerra fria, na antiga Leningrado (hoje São Petersburgo), aos sete anos de idade mudou-se para os Estados Unidos, mais precisamente para Nova York, onde desde então reside.
E foi nos Estados Unidos que descobriu-se escritor, fez e faz carreira, ganhou o seu mais importante prêmio até agora - melhor livro do ano pelo jornal Washington Post (The Russian Debutante's Handbook).
A história contada em Absurdistão é mais ou menos a história de todo russo que vive, hoje em dia, uma forte crise de identidade. A Rússia vive uma forte crise de identidade. O autor vive uma forte crise de identidade (pois é russo, vive nos EUA, faz sucesso nos EUA, escreve sobre a Rússia).
E não é somente a Rússia, naturalmente, que sofre semelhante tipo de crise. Todas as antigas repúblicas soviéticas, agora órfãs da proteção do forte aparelhamento estatal da falácia comunista lutam neste exato momento para saber o quê e quem são. E vivem as suas revoluções, recheadas de líderes demagogos, etnias que não existem, religiões que lutam entre si, mesmos povos que lutam entre si em busca de um naco de poder. Entre tais repúblicas, uma delas poderia muito bem ser o Absurdistão de Shteyngart, seu fictício país, criado para dividir o palco de seu hilário, mas seríssimo livro. O humor fino e inteligente de quem faz ironia de sua própria desgraça.
A par da falta de identidade, da falta de democracia, estabilidade democrática e de uma sucessão desenfreada de conflitos, essas repúblicas, sem o menor preparo prévio e com os seus fundamentos culturais absolutamente fragilizados, recebem uma invasão do capitalismo com as suas armas coloridas mais selvagens, mexendo de tal forma com as pessoas, quase despidas de suas identidades, que as transformam em tristes fantoches das figuras cidentais mais bizarras. Mais ou menos como o que aconteceu com aquele jogador de futebol brasileiro, há muitos anos atrás, um dos primeiros a ir jogar na Europa. Passou por lá três ou quatro anos e voltou mudo. Não aprendeu a falar o idioma de onde passou a morar e esqueceu-se do português.
Assim são os absurdistaneses, assim podem se tornar os russos, mesmo com o seu vastíssimo cabedal de cultura e tradições. Podem acabar se esquecendo de sua vodka de tanto tomar "Black Label" falsificado.
Sorte deles que têm os autores da nova geração, como Gary Shteyngart que, com o seu Absurdistão, mesmo mantendo viva a sua literatura lá nos EUA e recebendo prêmios no Washington Post, com certeza estão ciosos de sua importante responsabilidade em perpetuar a exuberante herança literária que receberam de sua pátria-mãe.
"Misha Vainberg é o filho do 1.238º homem mais rico da Rússia, amante de comida e bebida fartas, rapper amador e amante de uma latina de South Bronx com quem sonha viver um dia em Nova York, caso o Serviço de Imigração Americano lhe conceda um visto. Isso, porém, não vai acontecer, pois o falecido pai de Misha matou um influente empresário de Oklahoma e é Misha quem paga a conta, exilado do lar americano que adotou. Sem conseguir sair da Rússia, ele sonha com a sua amada Rouenna e com o reino de Oz em Nova York.
Sua salvação talvez esteja na minúscula nação do Absurdistão, um país rico em petróleo onde um funcionário corrupto do consulado lhe venderá um passaporte belga. Mas, quando eclode uma guerra civil entre dois grupos étnicos rivais e um poderoso local nomeia o azarado Misha para o cargo de ministro de assuntos multiculturais, nosso herói se vê chafurdando em disputas políticas, lutando pela própria vida, apaixonando-se outra vez e tentando descobrir se ainda é possível ter uma vida normal no séc XXI."

domingo, 5 de abril de 2009

BEIRUT...










"Bebendo com duas pessoas, você não deve beber mais do que a que bebe mais, nem menos do que bebe menos. Assim a que bebe mais não te achará um sórdido abstêmio, nem a que bebe menos um bêbado inveterado. Ambas as conotações irão da que bebe menos para a que bebe mais e da que bebe mais para a que bebe menos. No meio - do copo - está a virtude."




Millôr Fernandes






Todos sabem que o pesadelo do bêbado, na posterior sobriedade, são as lembranças que aos poucos vão lhe dando conta das besteiras que fez naquelas horas em que esteve "em outras esferas". Melhor para ele é a amnésia alcóolica.




Pior para o amigo do copo é o que acontece àquele que se julga amigo das letras. Desconfio que a ressaca moral deste último é o dobro da daquele.




Pois também acontece ao (pretenso) escritor (bloguista, cronista, etc) acordar no dia seguinte, olhar o que escreveu no dia anterior, agora publicado em um jornal e agir como um bêbado de ressaca, apavorado: mas eu fiz isso?




Assim me senti outro dia ao reler o que escrevi sobre o Beirute.




A grande vantagem do blog sobre a vida (quem dera pudesse esta ser assim!) é que não satisfeito com que eu escrevera, eu simplesmente deletei!




Imagine a glória que seria apagar um porre!!!!




Mas como o som do Beirut é realmente muito bom, espero poder me redimir com aqueles que, como eu, também torceram o nariz para o que eu escrevi, por meio de uma nova resenha. Assim, literariamente sóbrio, refaço o que escrevi e agora jaz morto em apagado em algum arguivo defunto de meu computador.




Realmente, o Zach Condom, a alma do Beirut, é um fenômeno musical. Figurinha carimbada na cena "underground" do eixo NY-Londontown, nasceu na baixa Califórnia, em meio a toda aquela influência latina, mexicana.




Estudou na Santa Fé High School e, aos quinze anos de idade, na cidade que leva o mesmo nome, lançou o seu primeiro trabalho, um "lo-fi" denominado "The Joys of Losing Wight".




Sempre foi muito inquieto, algo esquisito, um braço menor que o outro, resultado de um acidente doméstico (más línguas dizem que tal acidente envolveria uma gilete, uma banheira...). Essa ligeira deformidade o impediu de tocar guitarra, como gostaria.




Mas, dono de ouvido absoluto e também de uma enorme curiosidade, tornou-se um multi-instrumentista, características que levaram a sua música ser repleta de sons pouco comuns, provenientes de tubas, ukeleles, trompas, trompetes, conchas gigantes marinhas, etc.




Inquieto, como disse, expandiu muito a sua influência musical viajando pelo mundo, principalmente pelo leste europeu e todos aqueles países eslavos, conhecidos por sua enorme melancolia e romantismo exagerado, que nos faz lembrar aquelas tabernas fumacentas, com aqueles sujeitos de bigodes enormes com enormes copos nas mãos, chorando, olhando para as mulheres amadas de longe, cantando por elas, e por aí vai...Aliás, se vocês se derem ao trabalho de procurarem no Youtube pelos vídeos do Beirut (e são muitos) verão exatamente o que estou falando em alguns deles.




Some-se a isso uma ascendência européia, mais especificamente francesa, língua que domina e que chega a cantar em várias canções.




Seu trabalho, portanto, é um "mix" delicioso, exótico, de tudo isso, que eu detestaria ter de rotular de qualquer forma, chamando-o de qualquer nome, classificando-o de qualquer forma.




Seus primeiros CDs, "The Flying Club Cup" e "Gulag Oskertar", o primeiro mais lírico, e segundo, digamos, mais "eslavo", já pode nos dar um belo exemplo de tudo o que falo. Infelizmente, não há nenhum CD nacional do Beirut. Só encontramos, e com facilidade, mas muito caros, os importados. Mas valem a pena.







A Rede Globo, porém, incluiu em uma de suas minisséries - mais precisamente, Capitu - uma das músicas mais belas do Beirut, de seu EP "Lon Gisland", chamada "Elephant Gun". Fizeram um clipe maravilhoso usando essa música e outra do Black Sabbath, usando uma ballet sensacional, super-moderno. Vale a pena conferir. Está no Youtube também.




Até onde eu sei, essa foi a única vez que houve uma relativa popularização do Beirut aqui no Brasil. Mas lá fora, os caras estão arrebentando. Às vezes, chego a desconfiar da eficiência da globalização.




Há bastante pouco tempo, foi lançado lá fora "The March of Zapotech", a última jóia de Zach Condom.




Trata-se de um CD duplo, dois EPs, digamos assim.




O primeiro tem a ver com tudo o que ele fez até hoje. Há gravações ao vivo em lugares, praças no México, muito legal.




O segundo CD, que denominou "Realpeople Holland", porém, é surpreendente: o cara resvalou agora, com toda a sua competência, para as bandas do eletrônico. Só por curtição? Não sei.




Por isso, por todo o seu ecletismo, eu considero o Beirut uma das "vanguardas das vanguardas" da cena musica mundial moderna, até onde vai, naturalmente, o meu parco e modesto conhecimento.




Essa a minha dica de hoje.




Bon apetit!